A relação entre Sigmund Freud e Carl Gustav Jung é um dos capítulos mais fascinantes da história da psicologia e da psicanálise. O vínculo entre esses dois pensadores foi, ao mesmo tempo, profundamente criativo e intensamente conflituoso.
Neste guia introdutório, vamos explorar como essa parceria se formou, quais foram seus pontos de convergências teóricas e as principais diferenças conceituais. Além disso, abordaremos o rompimento que dividiu seus caminhos e o impacto duradouro que tiveram na psicanálise e na psicologia moderna.
O artigo abordará os seguintes tópicos:
- Freud e Jung: Um intercâmbio teórico e pessoal
- Pontos de Convergência entre Freud e Jung
- A Ruptura Teórica e Afetiva entre Freud e Jung
- Psicologia Analítica com Jung e Psicanálise com Freud: Principais diferenças conceituais
- A relação entre Freud, Lacan e Jung
- O impacto que a separação entre Freud e Jung teve na história da psicanálise e da psicologia
- A relação entre Freud e Jung: Uma conclusão

Freud e Jung: Um intercâmbio teórico e pessoal
O encontro entre Freud e Jung marcou o início de uma parceria promissora, tanto em termos teóricos quanto afetivos. Em 1899/1900, Freud publicou a significativa obra A Interpretação dos Sonhos, um livro que investiga a relação do inconsciente com a produção de imagens elaboradas em sonhos.
A discussão chamou a atenção de Jung, um psiquiatra suiço que, à época, já demonstrava interesse pelas manifestações simbólicas do inconsciente em pessoas com transtornos mentais.
O interesse de Jung foi percebido por Freud, que considerou esta uma oportunidade de difundir a psicanálise nos estudos psiquiátricos. Além disso, Freud buscava ampliar as discussões do campo em outros territórios, pois tinha receio de que a psicanálise pudesse ser percebida como uma “ciência judaica”.
Nessa disputa de interesses, a parceria entre eles foi tão promissora, que a primeira conversa, em 1907, teria durado mais de 13 horas ininterruptas, sinalizando uma conexão intelectual intensa. Freud e Jung passaram a trocar cartas e estabeleceram um intenso diálogo intelectual, que logo se transformou em amizade.
Assim, Freud via em Jung uma figura central para dar continuidade a sua teoria psicanalítica, e que ajudaria a expandir e legitimar o campo. Jung, por sua vez, via Freud como um mentor intelectual para os estudos do inconsciente.
Durante mais de 8 anos de colaboração, ambos desenvolveram ideias preciosas sobre a psique humana, os sintomas, sonhos e processos interpretativos sobre eles.
Pontos de Convergência entre Freud e Jung
Freud e Jung compartilhavam diversas concepções fundamentais. Essa base comum a ambos possibilitou uma ampliação significativa do campo da psicologia e da psicanálise, especialmente no que diz respeito à compreensão do inconsciente e à prática clínica.
Dentre as proximidades teóricas e metodológicas entre eles, algumas merecem destaque:
A importância do inconsciente:
Para Freud e Jung, o inconsciente desempenha um papel central na vida psíquica. Ambos consideravam que muitos pensamentos, emoções e comportamentos são influenciados por conteúdos que escapam à consciência.
Valor terapêutico dos sonhos:
Para eles, os sonhos revelariam conteúdos ocultos, se apresentando como um elemento essencial do processo analítico. Freud e Jung acreditavam que o ato de sonhar, recordar e relatar são considerados instrumentos de análise valiosos, sendo capazes de iluminar as zonas mais profundas da mente.
A transferência:
Freud e Jung reconheciam a importância da relação transferencial entre paciente e analista. Ambos concordavam que essa relação é ativa, dinâmica e profundamente reveladora — embora a forma de entender esse vínculo tenha divergido mais tarde.
A busca por um método clínico:
Além disso, eles desenvolveram abordagens baseadas na escuta, na interpretação e na elaboração simbólica da experiência subjetiva humana. Freud e Jung também tinham em comum o interesse em desenvolver um saber clínico e intelectual sobre a sexualidade — apesar de ocorrer em perspectivas diferentes.
Assim, apesar da ruptura posterior, essa fase de convergência foi decisiva para que a psicologia do século XX ganhasse profundidade, pluralidade e complexidade. A partir daquilo que compartilharam — e da tensão que os separou — surgiram novas maneiras de pensar o ser humano, suas dores, seus desejos e seus caminhos de transformação.

A Ruptura Teórica e Afetiva entre Freud e Jung
Nesse processo, diferenças profundas começaram a emergir, tanto em relação ao método analítico quanto à visão de mundo.
Em 1912, Jung publicou a obra Transformações e Símbolos da Libido. O livro propunha uma visão ampliada da energia psíquica, o que Freud considerou uma grave distorção dos princípios psicanalíticos.
Para Freud, Jung estava abandonando a ciência pela metafísica. Para Jung, Freud estava aprisionado em uma visão limitada e materialista da psique.
Jung passa a desenvolver uma teoria própria - a psicologia analítica - que, embora se parta de fundamentos psicanalíticos, seguiu um caminho teórico autônomo. Ele introduziu conceitos como o inconsciente coletivo, os arquétipos, a função simbólica dos sonhos e o processo de individuação, todos incompatíveis com o modelo freudiano.
Curiosidade: As divergências e tensões entre Freud e Jung foram tratadas em obras audiovisuais como no filme “Um Método Perigoso” (2011), dirigido por David Cronenberg.
Na obra, explora-se o surgimento da psicanálise, as proximidades, os conflitos profissionais entre eles e as experiências bem e mal sucedidas na prática psicanalítica. Além disso, trata da relação de ambos com Sabina Spielrein, uma paciente de Freud que, posteriormente, se relacionou com Jung.
Psicologia Analítica com Jung e Psicanálise com Freud: Principais diferenças conceituais
Nesse movimento, as divergências intelectuais ganharam espaço na relação entre Freud e Jung. À medida que aprofundavam seus estudos, tornaram-se cada vez mais evidentes suas diferentes formas de compreender os fundamentos da psique.
Mas, de fato, quais eram as diferenças?
A compreensão da libido e a teoria da sexualidade
As divergências na teoria da sexualidade entre Freud e Jung estão entre os principais motivos que levaram à ruptura entre os dois pensadores — e dizem muito sobre suas visões de mundo, de ser humano e de psique.
Para Freud, a sexualidade está no centro da constituição psíquica.
A teoria da libido em Freud é baseada na ideia de que o ser humano é movido por pulsões, principalmente as de caráter sexual. Para ele, essa energia é reprimida ao longo do desenvolvimento e retorna de forma disfarçada, gerando sintomas, sonhos e lapsos.
Além disso, Freud defendia que a sexualidade não começa na puberdade, mas na infância (sexualidade infantil). Para ele, tudo — dos sonhos à arte — pode ser, em última instância, reconduzido a conteúdos sexuais reprimidos. A sexualidade seria, portanto, uma chave universal para entender o funcionamento da mente humana.
Jung inicialmente aceitou a teoria sexual de Freud, mas logo começou a questioná-la por considerá-la reducionista. Para ele, a libido não deveria ser entendida exclusivamente como energia sexual, mas sim como uma energia psíquica geral, que se manifesta em diferentes formas: sexualidade, espiritualidade, criatividade, vontade de sentido, religiosidade, entre outros.
A sexualidade seria, então, para Jung, uma expressão possível, mas não única da psique.
Em vez de interpretar os sonhos apenas como disfarces de desejos sexuais, Jung os via como mensagens simbólicas vindas do inconsciente, frequentemente carregadas de elementos mitológicos e espirituais.
A estrutura do inconsciente
Além do inconsciente pessoal — formado por experiências individuais reprimidas já apontado por Freud —, Jung propôs a existência de um inconsciente coletivo. Esta seria uma camada mais profunda da psique que não se origina na vivência individual, mas é comum a toda a humanidade.
O inconsciente coletivo seria composto por arquétipos, ou seja, imagens universais e atemporais que moldam a forma como percebemos e vivemos o mundo.
Presentes em sonhos, mitos, contos e religiões, os arquétipos funcionam como estruturas simbólicas fundamentais para a construção do sentido e da experiência humana. Essa percepção de um inconsciente individual e um inconsciente coletivo se revelou como uma das maiores distinções entre eles.
Enquanto Freud buscava curar o sintoma por meio da rememoração de experiências individuais reprimidas, Jung propunha uma jornada de integração entre o consciente e o inconsciente individual e coletivo, guiada por símbolos, imagens e significados.
Símbolo e Transferência
Além disso, Freud acreditava que os símbolos se apresentavam como uma máscara para desejos individuais inconscientes. Já Jung, defendia que o simbolismo se manifestaria como uma representação transformadora do inconsciente coletivo.
A noção de transferência também se diferenciava entre eles. Freud compreendia a transferência como a repetição de padrões do inconsciente na relação com o analista. Já Jung, a percebia como uma dinâmica simbólica, capaz de auxiliar na transformação psíquica.
Abordagens e objetivos terapêuticos distintos
As abordagens e os objetivos terapêuticos também se distinguem entre Freud e Jung.
Freud fundamentava sua teoria em um modelo determinista e causal, voltado ao passado e às repressões infantis. O seu objetivo terapêutico centrava-se em tornar consciente o reprimido, aliviando sintomas neuróticos.
Jung, por sua vez, propunha uma abordagem dialética e simbólica, com foco na totalidade da psique e no processo de individuação e autoconhecimento. Assim, objetivava promover a individuação e o equilíbrio entre o consciente e o inconsciente.
A diferença de abordagem entre Freud e Jung teve impacto decisivo no rumo da psicologia ocidental, abrindo caminhos para outras abordagens do processo terapêutico.
Em Jung, por exemplo, a sua perspectiva ampliada da psique abriu caminhos para um olhar simbólico, espiritual e arquetípico para a psicologia. Nesse movimento, a Psicologia Humanista inspirada por Carl Rogers e Abraham Maslow, compartilharam com ele a ideia de que o ser humano busca crescer e integrar partes de si e alcançar uma existência autêntica.
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A relação entre Freud, Lacan e Jung
Embora Jacques Lacan tenha surgido em uma geração posterior à Freud e Jung, seu trabalho reatualizou conceitos freudianos centrais sob uma ótica estruturalista e linguística, influenciado por autores como Saussure, Lévi-Strauss e Hegel.
Lacan manteve-se avançando nas investigações psicanalíticas de Freud. O seu objetivo era explorar a linguagem como a própria estrutura do inconsciente, e não como um recurso simbólico e arquetípico, como defendia Jung, ou como meio de expressão dos desejos, como acreditava Freud.
O inconsciente, para Lacan, funciona como uma linguagem, ou seja, seria estruturado por significantes que escapam ao controle do sujeito, mas que organizam seu desejo, sua identidade e seus sintomas. Em outras palavras, para Lacan, o sujeito não é o “dono” de seus pensamentos, nem de sua fala — ele é falado pela linguagem, atravessado por significantes que o precedem.
Embora Lacan tenha elaborado uma perspectiva própria sobre o inconsciente, é notável o impacto e a influência de Freud e Jung em suas teorias psicanalistas.
O impacto que a separação entre Freud e Jung teve na história da psicanálise e da psicologia
Mais do que um simples desacordo teórico, o rompimento entre Freud e Jung representou a divergência entre duas visões de mundo, que acabaram por originar duas grandes tradições clínicas e filosóficas distintas: a psicanálise freudiana e a psicologia analítica junguiana.
A psicanálise freudiana seguiu sendo estruturada com base na sexualidade, no recalque, na transferência e na interpretação dos sintomas. Freud manteve um núcleo racionalista e científico, mesmo explorando territórios como os instintos de morte e a cultura.
Além disso, sua perspectiva se estendeu a partir de outros psicanalistas, diversificando-se em várias correntes: kleiniana, lacaniana, winnicottiana, entre outras — mantendo uma influência central nas áreas de saúde mental, cultura e teoria crítica.
A psicanálise influenciou a literatura, a crítica cultural, o cinema, a política e a filosofia, sobretudo através de Jacques Lacan, Jacques Derrida e Gilles Deleuze.
Já a psicologia analítica junguiana, avançou por um caminho mais simbólico e espiritual, explorando mitos, religiões, imagens arquetípicas e o processo de individuação como forma de transformação psíquica.
O seu impacto influenciou práticas como a arteterapia, a psicoterapia simbólica, a psicologia transpessoal, a ecopsicologia e até aspectos da educação e da espiritualidade contemporânea.
Além disso, propôs uma leitura voltada à integração dos opostos, à autocompreensão simbólica e à conexão com uma dimensão arquetípica universal.
A relação entre Freud e Jung: Uma conclusão
Historicamente, muitos autores consideram que a separação impediu o surgimento de uma síntese mais ampla entre razão e simbolismo, ciência e espiritualidade. No entanto, essa ruptura também produziu um legado fecundo: a partir dela, duas tradições puderam se desenvolver com profundidade, cada uma explorando aspectos distintos, porém complementares, da psique humana.
Com o tempo, o distanciamento inicial abriu espaço para uma reaproximação. Hoje, há um movimento crescente de diálogo entre as escolas freudiana e junguiana, especialmente entre clínicos e pesquisadores interessados em abordagens mais holísticas e interdisciplinares.
Essa pluralidade fez com que a psicologia se tornasse mais sensível às diferenças culturais, existenciais e espirituais entre os sujeitos. Assim, o legado de Freud e Jung, mesmo marcado por divergências, continua a inspirar caminhos de integração, escuta e transformação no campo da saúde mental.
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Referências
SciELO Brasil - Crônica de um fim anunciado: o debate entre Freud e Jung sobre a teoria da libido
FREUD, S. (1900). A interpretação dos sonhos. In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. 2ª ed. Rio de Janeiro: Imago, 1987, vol. 4, 5.
JUNG, C. G. (1912). Transformações e Símbolos da Libido. In: Símbolos da Transformação. 9ª ed. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2013, vol. 5.