No senso comum, quando falamos em alquimia, geralmente, a primeira coisa que nos vem à cabeça é o famoso livro de Paulo Coelho: “O alquimista”, que conta a história de um jovem pastor que parte em busca de seu "tesouro pessoal" após ter um sonho recorrente – o que não se afasta tanto assim do que Carl Jung nos fala sobre o tema.
A alquimia é um processo comentado há muitos séculos pela sua capacidade de transformar metais comuns em ouro, além de alcançar a pedra filosofal. E, para que possamos entender as metáforas e histórias por trás dos símbolos da alquimia e seus significados, a psicologia analítica nos fornece conceitos e elementos estudados e interpretados por Jung, que nos levam ao caminho da transformação interior, ou seja, rumo à individuação.
Como Carl Jung alinhou psicologia e alquimia
Em 1928, a alquimia passou a fazer parte da vida de Jung. Isso aconteceu por meio de um texto da alquimia chinesa, que chegou até ele por intermédio de Richard Wilhelm, conhecedor da psicologia analítica e consciente de que o conteúdo estava alinhado às pesquisas de Jung naquela época.
Sem dúvidas, esse foi um dos marcos mais importantes, pois a psicologia junguiana toma a própria alquimia como base para o seu desenvolvimento. Carl Jung recorreu a experiências pessoais e sonhos nesse processo, incluindo também a análise de pacientes que relataram episódios complementares.
Todos os textos eram trabalhados através de linguagem simbólica, em que os símbolos reuniam aspectos da consciência e do inconsciente. Foi então que Jung passou a usá-los não apenas como analogias, mas como forma de compreender e se aprofundar nos processos psíquicos.
As práticas alquímicas, em sua busca pela pedra filosofal – símbolo da iluminação –, refletem o processo pelo qual uma pessoa deve passar para expandir a consciência. Esse processo envolve o desenvolvimento psíquico em direção à individuação, que consiste na integração dos aspectos conscientes e inconscientes da psique.
Também podemos citar que ele enxergava diversos arquétipos nas imagens alquímicas, expressando polaridades como, por exemplo: o sol e a lua, a prima matéria e o ouro, o claro e o escuro. Na psicologia analítica, os arquétipos também estão conectados ao inconsciente coletivo, ou seja, à camada mais profunda da mente humana, compartilhada por todos, sem distinção.
Esse processo alquímico, considerado como uma purificação para a transformação, se refletia no próprio processo de individuação, onde é necessário confrontar a sombra – aspectos reprimidos da psique, os quais não queremos acessar –, para que todos os elementos sejam integrados a fim de alcançar um estado de equilíbrio.
De forma mais simples: no processo de individuação, precisamos ser os próprios alquimistas trabalhando a matéria-prima bruta – sombra –, com o objetivo de transformá-la em ouro – autoconhecimento. Mas nem tudo é tão fácil como parece.
O processo de transmutação para alcançar a pedra filosofal
O Opus Alquímico, também conhecido como a Grande Obra, é o termo utilizado para se referir ao processo de transformação que o alquimista busca alcançar – a transmutação de um estado inferior para um estado superior –, criando assim a pedra filosofal.
Ele é dividido em duas partes: operações – atividades realizadas em laboratório – e teoria – aquilo que pode ser observado, meditado e especulado. Sua fundamentação se dá na filosofia hermética, de Hermes Trismegisto e, ao longo do processo histórico, acabou sendo acrescido de ideias dogmáticas cristãs.
Como dito anteriormente, Jung utiliza desse processo como uma metáfora para a individuação, ou seja, a busca pelo autoconhecimento e a integração das diversas partes da psique, tanto conscientes quanto inconscientes. O Opus Alquímico seria então, um caminho simbólico que reflete as etapas da transformação psicológica, tendo alguns elementos principais e etapas específicas:
FASES DA ALQUIMIA | DO QUE SE TRATA O PROCESSO |
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Prima matéria | Ponto de partida para a transformação. Na psicologia analítica, é considerada como o estado inicial da psique – aspectos não reconhecidos, reprimidos ou que estão na sombra. |
Nigredo | Simboliza o enfrentamento da sombra, das partes mais negligenciadas da psique, daquilo que não se quer acessar e que está reprimido no inconsciente. Na análise, pode ser considerada como o momento de confronto, difícil e doloroso, onde medos e traumas tendem a aparecer para serem transformados. |
Albedo | É onde há a clareza, a fase em que os aspectos sombrios da psique já foram transformados, equilibrados e trazidos à consciência. Nesta fase, é onde acontece a integração dos opostos, além de uma profunda compreensão de si mesmo. |
Rubedo | Fase final onde ocorre a unificação de todas as partes da psique. Ela representa a conclusão da transformação e a integração total do inconsciente com a consciência – a criação da pedra filosofal, ou seja, o self integrado. Podemos considerar como exemplos para esta fase Buda e Jesus, pois é aqui que ocorre a iluminação. |
Mas não podemos nos ater apenas às fases do Opus Alquímico, visto que para que a prima matéria comece seu processo, precisamos pensar também na ideia de Kairós, que nos traz a necessidade de um tempo – momento – adequado para que o trabalho alquímico seja iniciado.
Na clínica, por exemplo, durante o processo terapêutico, o paciente só conseguirá acessar um trauma – um aspecto de sua sombra – quando já tiver passado, previamente, por outras etapas da análise, ou seja, “é chegado o seu Kairós”.
Também é necessário que exista um processo de introspecção e reflexão profunda, denominado meditatio, onde é preciso manter um diálogo com aspectos internos da psique que, muitas vezes, podem ser representados por imagens arquetípicas de anjos da guarda, guias, mentores, gurus ou outras facetas do si mesmo – permitindo assim um contato com a subjetividade, proporcionando uma maior compreensão de elementos do inconsciente.
A partir disso, pode-se concretizar aspectos psíquicos através da imaginatio, que se expressa de símbolos – linguagem de expressão do inconsciente. Isso faz com que tais aspectos se tornem visíveis, pois foram trazidos à consciência. Para que sejam compreendidos, é necessário que esses símbolos estejam conectados a algo já conhecido, para que possam ser revelados.
O Opus Alquímico também necessita de um local apropriado para a operação, como se o “vaso” onde a alquimia é feita servisse como um útero para a própria gestação da pedra filosofal. Muitas vezes, esse lugar, no caso da terapia junguiana, será o próprio setting terapêutico.
Essa é uma atividade considerada sagrada, pois lida com o sublime, se tratando de uma atuação quase secreta ao próprio alquimista, pois ele conhece apenas uma parte do trabalho, enquanto parte dessa busca é ocultada por ela mesma e jogada no inconsciente.
O que é alquimia e seu desenvolvimento
Assim como a natureza oferece os metais como matéria prima para que o alquimista a transforme em ouro, o inconsciente – ou a vida em geral – nos oferece potencialidades a serem trabalhadas para a integração dos opostos no processo de individuação, a partir da tomada de consciência.
É importante dizer que um dos conceitos fundamentais da alquimia é de que nada é criado do zero, mas sim existe a transformação de tudo. Como na famosa frase: “Na natureza, nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”, do químico francês Antoine-Laurent Lavoisier (1743-1794), que corresponde à Lei da Conservação das Massas.
De certa forma, essa é uma frase alquímica, pois todas as potencialidades existentes se encontram em nossa psique desde o momento do nascimento. Até porque, quando falamos que é necessário um “vaso” que se assemelha ao útero para que o processo ocorra, muitas vezes, esse retorno ao útero se faz necessário em terapia, com o objetivo de que certos conteúdos do inconsciente sejam acessados para que haja sua integração.
Nesse contexto, a prima matéria é tudo aquilo que é intrínseco ao ser humano – pensamentos, ações, comportamentos, emoções – e, do ponto de vista psicológico, são esses elementos que irão passar pelas transformações do processo alquímico.
Na psicologia analítica, os primeiros aspectos com necessidade de transmutação e aperfeiçoamento são provenientes da sombra, ou seja, tudo aquilo que é rejeitado e ignorado acaba sendo recalcado ou esquecido no inconsciente. E, para além desse conteúdo, também existe o macro, denominado de inconsciente coletivo, que nos influencia através dos arquétipos, conforme já mencionado.
Psicologia e alquimia, do que fala o elemento
Muitos dos processos alquímicos estão intimamente relacionados aos elementos água, fogo, terra e ar, principalmente devido ao paralelo que é feito com os metais. Por exemplo, uma espada é forjada através do refinamento de um metal específico, exposto ao fogo, seguido de seu resfriamento na água. Da mesma forma, ocorre com o material psíquico, que Jung divide da seguinte forma:
- Calcinatio: elemento fogo. Tem relação com a Rubedo e representa a purificação das chamas. Também é tido como representação das paixões fulminantes e da raiva. Ou seja, se não for um aspecto devidamente trabalhado, tende a ser destrutivo – para o próprio indivíduo ou pessoas ao redor.
- Solutio: elemento água. Representa a dissolução de aspectos enrijecidos da psique, comportamentos que acabaram sendo consolidados. Pode ser relacionado com a fragilidade, pois para o líquido não existe certo contorno. Ao se quebrar em partes, a quantidade de energia psíquica liberada pode ampliar outros aspectos, afrouxando o sofrimento da consciência. Muitas vezes, no processo de transferência, o paciente identificado com tal reação alquímica tende a se dissolver no terapeuta em busca desse contorno.
- Sublimatio: elemento ar. Representa a elevação e a transcendência de conteúdos psíquicos. Esse processo busca libertar o indivíduo de padrões mais densos ou materiais, permitindo que sua consciência alcance níveis mais elevados. A Sublimatio está ligada à capacidade de abstração, insight e compreensão de significados mais profundos.
- Coagulatio: elemento terra. Simboliza a concretização, a materialização de conteúdos psíquicos antes dispersos ou abstratos. Esse processo corresponde à integração dos aspectos inconscientes na consciência, permitindo que ideias e potencialidades se tornem tangíveis e úteis na vida prática. A Coagulatio é essencial para que o trabalho psíquico realizado encontre um equilíbrio sólido e funcional no dia a dia.
Essas quatro operações nos oferecem uma metáfora para a compreensão da jornada alquímica, pois, eventualmente, elas chegarão para todos. Não podemos considerar um passo a passo ou uma jornada linear, mas um caminho com avanços e regressões, idas e voltas, por muitas vezes longo e sinuoso.
Alquimia e terapia, o paralelo da expansão da consciência
A psicologia junguiana, assim como o processo alquímico, envolve uma interação constante entre o mundo interno e externo, onde a matéria – as experiências vividas – refletem os conteúdos psíquicos.
O analista e o paciente trabalham em conjunto para decifrar esses reflexos, projetados nas situações rotineiras ou em eventos que parecem unicamente externos. Trata-se de um processo sutil, pois lida com feridas psíquicas – a sombra.
Portanto, é necessário que o indivíduo respeite seu próprio tempo – Kairós –, para que o seu Opus Alquímico aconteça. Mas mesmo em momentos de pausa (da terapia), o desenvolvimento psicológico não cessa; ele ocorre de forma orgânica, sendo impulsionado pela força natural de evolução da psique.
Acessar tais elementos, por mais doloroso que possa parecer o confronto com a sombra, gera potencial para a transformação da psique e o processo de individuação. Então, assim como o alquimista transforma metais brutos em ouro, o paciente é capaz de transmutar dores e dificuldades em autoconhecimento, integrando seus opostos e ampliando assim sua consciência.
Para tal, o analista tende a ser visto como um elemento fundamental, também como sendo alquimista que, como descrito na citação abaixo, convoca o paciente a tomar posse de sua própria psique:
“Geber requer do artifex as seguintes qualidades psicológicas e caracterológicas: ele deve ter o espírito extremamente sutil e dispor de conhecimentos suficientes acerca dos metais e dos minerais. Assim pois não pode ser grosseiro de espírito ou rígido, nem pode ser voraz ou cobiçoso, indeciso e inconstante. Não deve ser apressado ou presunçoso. Pelo contrário, deve ter firme propósito, longanimidade, perseverança, paciência, docilidade e moderação.”
(Apud Carl Gustav JUNG, Psicologia e Alquimia, p. 282-3).
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Referências bibliográficas:
JUNG, Carl Gustav. Psicologia e alquimia. Petrópolis: Vozes, 2016.
STEIN, Murray. O mapa da alma. São Paulo: Cultrix, 2006.
VON FRANZ, Marie-Louise. Alquimia e imaginação ativa. São Paulo: Cultrix, 2022.