Psicanálise

Tripé da Psicanálise: os três pilares da formação do psicanalista

Tripé da Psicanálise: os três pilares da formação do psicanalista

Você sabe o que é o tripé da psicanálise? Neste artigo, vamos explorar os três pilares fundamentais para a formação de um psicanalista: a análise pessoal, a supervisão clínica e o estudo teórico. Vamos entender como surgiu a exigência desse tripé, qual a sua importância para a prática ética da psicanálise e de que forma ele ajuda a construir a escuta analítica. Também vamos discutir os riscos de ignorar essas etapas e as implicações éticas na atuação profissional.



O que é o tripé da psicanálise?

O tripé da psicanálise diz respeito aos três pilares da formação de um psicanalista: análise pessoal, supervisão e estudo teórico. De acordo com Freud (1926/1996), somente uma formação fundamentada nestas três bases tornaria um sujeito apto para ser psicanalista.

A formação psicanalítica

A primeira menção de Freud ao tripé da formação psicanalítica data de 1919 quando publicou o pequeno ensaio “Sobre o ensino da psicanálise nas universidades”. No entanto, foi somente entre os anos de 1925 e 1933 que o obedecimento a este tripé foi oficialmente considerado a condição fundamental para a formação de quem quisesse praticar a psicanálise.

Segundo Roudinesco & Plon (1988), tal oficialização se fez dentro da IPA (Associação Psicanalítica Internacional), primeira instituição de formação de psicanalistas fundada por Freud e seu discípulo Ferenczi em 1910. Ora, como a psicanálise vinha desfrutando de uma imensa fama, era comum que os mais variados tipos de pessoas passassem a praticá-la e a se declararem psicanalistas. E o problema era que muitos destes não tinham a preparação necessária para tal.

Deste modo, era necessário barrar o caminho e a admissão na IPA dos chamados “psicanalistas selvagens”, gíria que na época fazia referência aos maus psicanalistas, espécies de “charlatões” que praticavam a psicanálise. Além deles, seriam barrados os psicóticos, os “gurus” e os líderes religiosos. E, neste contexto, uma longa e polêmica discussão também se fez sobre os que praticavam a psicanálise sem possuir o diploma de médico (Freud, 1926/1996).

banner curso 'Freud e os Fundamentos da Psicanálise: Teoria e Clínica', por Ricardo Salztrager

O surgimento do tripé da formação psicanalítica

Daí a instituição do tripé da formação psicanalítica: era preciso colocar um mínimo de ordem em tamanha bagunça. E para tal, passou a ser exigido que os psicanalistas em formação passassem por 1) uma análise pessoal; 2) uma supervisão de seus primeiros atendimentos; e 3) se dedicassem aos mais variados estudos teóricos ao longo deste percurso.

Assim, em primeiro lugar, formulou-se a necessidade de um psicanalista passar por uma análise pessoal com outro psicanalista reconhecido pela IPA. Tal procedimento funcionaria como garantia de que ele estava sendo “bem analisado”. E jamais alguém poderia qualificar-se com o título de psicanalista antes de terminar seu processo de análise pessoal.

Em segundo lugar, havia a necessidade de supervisão. Deste modo, após o término de suas análises pessoais e com a devida autorização de seus psicanalistas, os formandos poderiam começar a atender desde que supervisionados por alguém também reconhecido pela IPA.

Por fim, foi exigido que, ao final de todo este percurso, eles apresentassem um trabalho teórico original a ser comunicado em uma das reuniões científicas da IPA. Tal trabalho seria o resultado dos muitos estudos que eles eram obrigados a fazer durante seus processos de análise pessoal e de supervisão.

Com a aprovação deste trabalho teórico, eles poderiam finalmente declarar-se psicanalistas, praticar a profissão e serem reconhecidos pela IPA (Miller, 1989). A seguir analisaremos detalhadamente cada um dos três pilares do tripé da psicanálise.


Análise pessoal: o mergulho necessário no próprio inconsciente

Conforme estamos demonstrando, a primeira base do tripé é a análise pessoal. Em relação a isto, ficou famosa a intervenção de Freud (1910/1996) quando, durante as conferências proferidas nos Estados Unidos, perguntaram-lhe do que precisaria alguém para tornar-se psicanalista. Ele então respondeu que esta pessoa deveria saber “interpretar os próprios sonhos”.

Deste modo, fica marcado ser imprescindível que o futuro psicanalista tenha certo contato com suas tendências inconscientes. Com efeito, a psicanálise é uma prática que se aprende em um divã. De forma que o manejo psicanalítico em si seja algo impossível de ser aprendido apenas em livros, artigos, palestras e mesmo em universidades e cursos de especialização.

Deve o futuro psicanalista passar por um amplo processo de análise pessoal e é apenas através desta experiência que ele conseguirá entender o que se faz em um consultório. Em suma: só entende o trabalho do psicanalista aquele que se propõe a elaborar suas próprias tendências inconscientes.

Aquele que não aceita passar por uma análise pessoal ficaria mais vulnerável a alguns riscos. Dentre eles:

banner curso freud e as fantasias, por Ricardo Salztrager

a) O risco de projetar-se em seus pacientes

Com efeito, aquele que não se submete a uma análise pessoal pode acabar projetando demais suas próprias questões em seus pacientes.

Nas palavras de Freud (1912/1996), “quem não se tiver dignado a tomar a precaução de ser analisado (...) cairá facilmente na tentação de projetar (...) algumas das peculiaridades de sua própria personalidade (...) e desencaminhará os inexperientes” (pp. 130-131).

Como exemplo, podemos mencionar o de um psicanalista bastante ciumento e que, assim, corre o risco de acabar sugerindo a um de seus pacientes que ele é traído. Ou seja, pode o paciente contar-lhe que, volta e meia, sua esposa sai com as amigas ou mesmo sozinha, mas que ele não vê qualquer problema nisso. No entanto, o analista ciumento por demais pode acabar reagindo a esta fala com um estranho conselho de “cuidado que numa dessas, você pode acabar perdendo ela para outro homem”.

Ou então o exemplo de um psicanalista que não lida muito bem com alguns de seus desejos homossexuais e que, assim, pode acabar concluindo que um de seus pacientes é homossexual, sem nem escutá-lo direito. Neste caso, o paciente pode contar-lhe sobre uma forte amizade que mantém com outro rapaz e, assim, sem nem escutar-lhe direito, o psicanalista pode concluir haver um desejo sexual nesta relação meramente amigável.

b) O risco de criar algumas resistências em seu trabalho

O processo de análise pessoal também ajuda o psicanalista a elaborar algumas de suas questões que, caso contrário, funcionariam como verdadeiras resistências ou entraves à sua escuta. Em outros termos, algumas questões suas ainda mal-elaboradas poderiam gerar alguns “pontos cegos” que viciariam sua escuta e o impossibilitaria de ouvir o que seus pacientes efetivamente dizem:

“O médico (...) não pode tolerar quaisquer resistências em si próprio. (...) Deve-se insistir, antes, que tenha passado por uma purificação psicanalítica e ficado ciente daqueles complexos seus que poderiam interferir na compreensão do que o paciente lhe diz. (...) Todo recalque não solucionado nele constitui o que foi apropriadamente descrito por Stekel como um ‘ponto cego’ em sua percepção analítica” (Freud, 1912/1996, pp. 129-130).

Como exemplos destas resistências ou “pontos cegos”, podemos mencionar o caso de um psicanalista que, ainda sem ter elaborado suficientemente algumas questões com seus pais, teria sua escuta contaminada por este problema. Assim, supomos que ele culpe seus pais por alguns de seus fracassos na vida. Neste caso, ao ouvir um paciente que se queixa de tristeza, solidão ou timidez, pode o psicanalista apressadamente concluir que os pais deste paciente são os verdadeiros culpados pelo que ele se queixa.

Ou então o exemplo de um psicanalista que tem sua escuta viciada por ainda não lidar muito bem com o fato de um de seus filhos consumir álcool. Neste sentido, ao ouvir um paciente relatar-lhe que seus filhos gostam de sair com amigos para beber (mas sendo isto um mero detalhe em seu discurso e que nem lhe importa muito) pode o psicanalista privilegiar demais este fragmento, ao invés de centrar-se em questões que efetivamente incomodam o paciente.

Supervisão em psicanálise: escutar o que escutamos

A segunda base do tripé é a supervisão. Ela pode ser definida como a prática de um psicanalista (iniciante ou não) de levar seus casos para discuti-los com outro psicanalista mais experiente.

Deste modo, em supervisão, o psicanalista será devidamente alertado a respeito, por exemplo, das projeções que eventualmente faz em seus pacientes, das possíveis resistências ou “pontos cegos” em sua escuta e, sobretudo, se está ou não conseguindo manter com eles uma “atenção flutuante”.

Conforme vimos no texto sobre a associação livre, a “atenção flutuante” corresponde à necessidade de o psicanalista saber escutar seus pacientes sem, a princípio, privilegiar quaisquer aspectos de seus discursos. Trata-se de uma tarefa bastante difícil de ser cumprida e, neste aspecto, uma supervisão pode muito bem auxiliá-lo.

Por exemplo, quando nos concentramos demais em um material que nossos pacientes nos trazem, é certo que negligenciamos outros tantos. E isto não deve ocorrer em nossos consultórios. Caso atuemos desta forma, estaremos arriscados a jamais descobrirmos nada além do que já sabemos. Neste sentido, uma boa supervisão pode ser muito útil.

Fora que quando um psicanalista cede à tentação de privilegiar apenas um ou poucos aspectos dos discursos de seus pacientes, pode-se ter a certeza de que ele assim age em virtude de suas próprias questões.

Por exemplo, vamos supor que um psicanalista possua uma série de problemas com seus irmãos. Neste caso, quando, dentre tantas outras coisas, algum de seus pacientes vem a narrar-lhe uma briga de família, pode o psicanalista acabar centralizando demais sua escuta neste ponto. O problema aqui é que o paciente pode nem ter se importado muito com a briga e efetivamente querer trabalhar outros assuntos. No entanto, o psicanalista mal supervisionado corre o risco de, em virtude de suas próprias questões, acabar privilegiando este aspecto.



Estudo teórico na psicanálise: teoria como sustentação da escuta

Por fim, o terceiro alicerce do tripé da psicanálise é o estudo teórico. De fato, as mais variadas instituições de formação psicanalítica oferecem uma série de cursos, módulos, palestras, debates e grupos de estudos sobre os mais variados temas da psicanálise.

Assim, durante todo o período no qual o psicanalista em formação faz sua análise pessoal e pratica a supervisão de seus primeiros atendimentos, ele também tem a oportunidade de mergulhar em uma série de estudos teóricos.

Tais estudos teóricos podem se dar sobre os principais conceitos da teoria freudiana: o inconsciente, os sonhos, a sexualidade, o narcisismo, as fantasias, a transferência, as pulsões, a angústia e o desamparo, dentre tantos outros.

Há também nas instituições alguns módulos de estudo sobre os principais autores pós-freudianos: Ferenczi, Balint, Winnicott, Lacan, Klein, dentre outros.

E também é interessante notar a presença de muitos grupos de estudos sobre questões atuais cujas discussões em muito auxiliam em nossa prática: debates sobre racismo, homofobia, debates sobre gênero, etc.

O tripé e a ética do trabalho de psicanalista

Portanto, conclui-se ser necessário o cumprimento deste tripé para que alguém venha a tornar-se psicanalista. Em si, seus três pilares são indissociáveis. Ou seja, de nada adiantaria estudar sem fazer uma análise pessoal ou supervisão. Do mesmo modo, de nada adiantaria apenas fazer supervisão sem uma análise pessoal e um estudo teórico. O mesmo vale para alguém que apenas tenha passado por uma análise pessoal, mas se recusa a estudar e a ser supervisionado.

Deste modo, a formulação deste tripé envolve toda uma discussão ética sobre o trabalho daqueles que se recusam a cumpri-lo. Há muitos, por exemplo, que se dizem psicanalistas apenas por possuírem uma faculdade de psicologia e terem aprendido sobre psicanálise, mas que, por exemplo, nunca se submeteram a uma análise pessoal.

Fora os tantos “psicanalistas selvagens”, “gurus”, líderes religiosos e mesmo “charlatães” que, tal como na época de Freud, ainda existem e fazem seus questionáveis atendimentos por aí.


Este texto foi escrito pelo professor Ricardo Salztrager, psicanalista e professor associado da UNIRIO e da Casa do Saber. Possui Graduação em Psicologia, mestrado e doutorado em Teoria Psicanalítica pela UFRJ.

Conheça os cursos de Ricardo Salztrager





Referências:

Freud, Sigmund. (1910). Cinco lições de psicanálise. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. vol. 11. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 15-65.

______. (1912). “Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise”. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. vol. 12. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 123-135.

______. (1919). “Sobre o ensino da psicanálise nas Universidades”. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. vol. 17. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 185-191.

______. (1926). “A questão da análise leiga”. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. vol. 20. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 175-249.

Miller, Dominique. (1989). “Tão só como sempre estive em minha relação com a causa analítica”. In: Miller, Gérard. Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora.

Roudinesco, Elisabeth. & Plon, Michel. (1998). Dicionário de psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora.

Tags relacionadas