É provável que você tenha ouvido algum conto de fadas quando era criança, conhecido histórias antigas de mitos ou se deparado com figuras religiosas estampadas em quadros expressivos. Dentro desse contexto, na época, não tinha conhecimento suficiente – uma consciência expandida – que ajudasse na interpretação das principais características dos arquétipos ali inseridos.
Neste texto, à luz da psicologia analítica, os símbolos dos signos serão decifrados a partir de uma pincelada no inconsciente coletivo, conceito amplamente discutido por Jung a fim de que a psique humana possa ser compreendida em sua totalidade e complexidade.
Jung, o conceito de arquétipo e o inconsciente coletivo
O processo histórico é essencial para que possamos entender a atualidade e, quando falamos de arquétipos – um dos principais conceitos da psicologia junguiana –, existe uma necessidade ainda maior de ampliarmos nossos olhares, com o objetivo de construirmos uma base bem estruturada para analisarmos algo que não se pode medir em palavras, que é inefável.
Jung era um psiquiatra que se denominava psicólogo; seus longos anos de estudo foram baseados nos fenômenos, não deixando que as teorias viessem antes. Toda essa experiência pregressa à teorização lhe proporcionava um rico saber, visto que, para ele, poderiam valer mais do que milhares de escritos. Dessa forma, em sua clínica, era primordial que a fala do paciente fosse colocada à frente de qualquer tipo de conceito ou teoria, o que é aplicado até os dias atuais.
No caso da análise, o psicólogo busca explorar e compreender todas as dinâmicas existentes internamente compondo a psique, ou seja, trabalha-se tanto o consciente como o inconsciente – que se apresenta das mais diversas formas, como nos sonhos, símbolos ou arquétipos.
Acessar o consciente é uma tarefa quase palpável, mas, no caso do inconsciente, é como descascar uma cebola, são tantas camadas que, na maioria das vezes, nos perdemos antes de chegarmos ao seu miolo.
Por isso, Carl Jung trazia como forte argumento que não se podia reduzir todos os aspectos da experiência humana a explicações psicológicas – o que denominava de psicologismo –, pois, dessa forma, estaríamos limitando toda a compreensão da psique e do próprio mundo através de uma visão reducionista.
Para a psicologia junguiana, o inconsciente não é um depósito de conteúdos reprimidos. Mas de onde vem esses conteúdos que não passam pela consciência? Como eles podem se expressar de forma tão influente sem que estejam necessariamente relacionados com a vida pessoal?
O inconsciente coletivo como uma das suas mais originais contribuições
A partir de seus questionamentos e estudos, Jung ia cada vez mais fundo nos materiais do inconsciente, explorando sonhos e fantasias dos seus pacientes, bem como materiais oriundos do seu trabalho pessoal de introspecção. Isso o levou a criar teorias e desmembrar as estruturas da psique, onde descobriu que algumas delas eram inerentes a todos os seres humanos, como no caso do inconsciente coletivo – sua camada mais profunda.
Um dos pontos marcantes para que chegasse a tal entendimento, foi um sonho tido por ele, onde uma casa de vários andares se mostrava como uma descida ao recôndito da psique. Nesse sonho, Jung explorou os diversos níveis, como sendo camadas do inconsciente, onde os mais altos eram organizados – representando a atualidade –, enquanto os mais profundos se encontravam abandonados – com a presença de crânios que remontavam ao primitivo. Só então, Carl Jung fez sua primeira menção ao inconsciente coletivo.
Não à toa, na mesma época, havia toda uma dedicação de sua parte ao estudo da mitologia, seus simbolismos e povos antigos, aprofundando-se nas teorias de Friedrich Creuzer.
De acordo com o que ia observando, ouvindo e experienciando, elaborou a ideia de que o conteúdo contido no sonho – e nessas partes mais profundas do inconsciente – era uma combinação de forças e padrões universalmente predominantes, que denominou de arquétipos e instintos. Nesse nível, nada seria individual ou único, o inconsciente coletivo não seria fruto da nossa vivência, mas sim um local onde todos nós estaríamos imersos.
A noção de Jung de arquétipos começou quando ainda colaborava com Freud, tendo sua origem localizada nas obras que escreveu no período entre 1909 e 1912. A exploração e a descrição do que Jung denominou inconsciente coletivo foram os elementos que conferiram à sua obra o caráter mais marcante e singular.
O que é arquétipo
Ao contrário do que muitos acreditam, o arquétipo não é uma construção cultural, pois não foi criado por nós. Na realidade, é ele quem nos molda, e é a partir do seu impulso que também desenvolvemos a nossa consciência.
Para além, as construções culturais são responsáveis pelos símbolos arquetípicos, que facilitam o acesso à energia arquetípica, moldando a totalidade da experiência humana. Esses símbolos funcionam como dons que a natureza oferece, sem distinção de classe, credo, cor ou gênero.
Existem alguns arquétipos básicos, que estão presentes em todas as pessoas e acessíveis a elas – são a base para a construção de experiências. Porém, vale ressaltar, que nem sempre serão constelados de uma forma consciente por todos, a manifestação dos arquétipos de Jung dependerá da sintonia de cada um no contexto dessa linguagem simbólica do inconsciente. Confira alguns deles:
ARQUÉTIPOS JUNGUIANOS | PRINCIPAIS CARACTERÍSTICAS |
---|---|
Self | É a parte central da psicologia analítica, sendo identificado como quem realmente somos, uma busca pela totalidade e pela individuação. |
Ego | Também com muita relevância para as teorias apresentadas por Jung, o ego é a nossa identidade consciente, como nos percebemos e como queremos ser percebidos pelo outro. Ego e Self equilibrados acabam sendo fundamentais para a jornada de individuação. |
Sombra | A maioria das pessoas não deseja ter acesso a esse arquétipo, por se tratar da parte reprimida ou considerada como obscura da personalidade. Compreender a própria sombra também faz parte do processo. |
Anima e Animus | Representando o feminino e o masculino, respectivamente, estão em todos nós, independente do sexo biológico, auxiliando assim a dinâmica de integração dos opostos. |
Herói | Coordena uma série de símbolos de forma característica para expressar a realização de grandes feitos, muito bem representados quando analisamos a vida de profetas. Ele exige o abandono do pensamento fantasioso infantil, para que a realidade seja aceita de um modo ativo. |
Mãe e Pai | Não se restringem a figuras parentais literais; eles se manifestam em papéis e comportamentos que podem ser assumidos ao longo da vida, como por exemplo: nutrição, amor, cuidado e o útero, no caso da mãe; e autoridade, lei, racionalidade e disciplina, no caso do pai. |
Criança | Este arquétipo aparece em muitos mitos, contos de fadas e sonhos como a criança divina, o bebê milagroso ou o herói infantil. Pode ser associado a momentos de transformação e novos começos. Simboliza a pureza, o lado instintivo e espontâneo do ser humano. |
Velho sábio | Simbolizando sabedoria, orientação e conhecimento profundo, o arquétipo do velho sábio representa a conexão com o inconsciente coletivo e a capacidade de oferecer soluções ou conselhos. Dessa forma, muitas vezes, é associado à figura do mentor, guia ou ancião, em mitos, contos de fadas e narrativas culturais. |
Os arquétipos, como fonte primordial de energia e padronização psíquica, constituem a base essencial dos símbolos psíquicos, são como matrizes do funcionamento dos símbolos que expressam a normalidade e a patologia. No entanto, as imagens arquetípicas frequentemente correm o risco de serem confundidas com uma psicologia espiritualizada, desprovida de um embasamento sistematizado.
Dessa forma, é fundamental que saibamos fundamentar tais discussões na vida e em tudo aquilo que é vivido no corpo humano, entrelaçando as histórias pessoais, a exploração da psique, o corpo e a mente.
A partir disso, Jung traz a ideia de que o homem não nasceu da tábula rasa, mas sim inconsciente, possuindo muitas informações que não adquiriu por si, mas que herdou dos seus antepassados, mesmo das mais remotas origens. Ou seja, se compõe de um sistema organizado, advindo de milhões de anos de desenvolvimento, assim como os pássaros que constroem seus ninhos ou tartarugas que colocam seus ovos na mesma praia onde nasceram – o plano básico da sua natureza coletiva, um plus forts que vous (mais fortes do que a gente).
As manifestações dos arquétipos na contemporaneidade
Com todos esses conceitos e teorias da psicologia junguiana, às vezes, paira no ar o questionamento de como os arquétipos e suas principais características podem influenciar no desenvolvimento de uma personalidade, então, para clarificarmos o que trouxemos até aqui, vamos entender como eles moldam não apenas nossas histórias, mas também nossas identidades.
Ao nos relacionarmos com essas figuras arquetípicas, através dos mitos, filmes ou até mesmo em nossa própria vida, começamos a reconhecer partes de nós mesmos, acessando camadas mais profundas da psique, como falado anteriormente, sendo assim, a compreensão permite que possamos integrar esses aspectos de forma mais consciente. Cada arquétipo, com seus padrões e símbolos, tem o poder de influenciar decisões, medos, motivações e desejos que guiam nossas ações no mundo.
Nos contos de fadas, como em “Branca de Neve e os Sete Anões”, o arquétipo do herói é personificado pelo príncipe, enquanto o arquétipo da criança divina é simbolizado por Branca de Neve, que embarca em uma jornada de transformação e confronta sua sombra. Já em “A Bela e a Fera”, Bela representa o feminino consciente – Anima –, enquanto a Fera vivencia o processo de integrar sua sombra masculina em busca de aceitação e transformação.
Os mitos também são fonte de consulta quando o assunto é arquétipo, como no caso de Thor, na mitologia nórdica, onde Thor é o próprio herói, defendendo o mundo contra forças malignas, enquanto seu martelo, Mjöllnir, simboliza poder e proteção, enquanto também reflete o processo de confronto com a sombra, representada pelas forças do caos e da destruição. A mitologia grega nos traz o mito de Narciso, que nada mais é do que o arquétipo do ego, que se encontra inflado, com uma grande obsessão consigo mesmo – essa representação nos traz também a sombra, pois esse ego não está “saudável”.
Filmes são amplamente trabalhados com base em personalidades relacionadas aos arquétipos, em que a psique humana se depara com o que há de mais óbvio; por serem tão evidentes, muitas vezes, tais contextos acabam passando despercebidos. Alguns dos mais famosos são:
- "O Senhor dos Anéis" – de Tolkien –, onde a jornada de Frodo é um exemplo clássico de individuação.
- Arquétipo do velho sábio (Gandalf).
- Arquétipo do herói (Frodo).
- Arquétipo da sombra (Smigol).
- "Star Wars" – de George Lucas –, que consiste em um processo de transformação psíquica ao longo da saga.
- Arquétipo do herói (Luke Skywalker).
- Arquétipo do velho sábio (Yoda).
- Arquétipo da sombra (Darth Vader).
- "O Rei Leão" – da Disney –, onde o personagem principal precisa confrontar sua sombra para alcançar a individuação.
- Arquétipo do herói (Simba).
- Arquétipo da sombra (o passado e Scar).
- Arquétipo do velho sábio (Rafiki).
E, claro, ícones da cultura pop também devem ser mencionados, como:
- "Game of Thrones" – de George R.R. Martin.
- Arquétipo do herói (Jon Snow).
- Arquétipo da sombra (Cersei Lannister).
- "Vingadores: Ultimato" – da Marvel Studios.
- Arquétipos de heróis (Capitão América e Homem de Ferro).
- Arquétipo da sombra (Thanos).
- "Stranger Things" – de Matt e Ross Duffer.
- Arquétipo do herói (Eleven).
- Arquétipo da sombra (Demogorgon).
- Arquétipo do velho sábio (Jim Hopper).
Ao considerar temas e cenários arquetípicos, como os citados acima, as pessoas, muitas vezes, se veem caindo em uma armadilha. É como estar em um labirinto sem saída, onde o ego, que sempre tenta evitar enfrentar seus desafios internos e responsabilidades, se vê sem alternativas.
Esse é o ponto onde a jornada interior, segundo os conceitos de Jung aqui apresentados, exige que se encare suas questões, pois, até que essas questões sejam resolvidas, a liberdade não será alcançada.
Como se aprofundar nos símbolos dos signos e nos arquétipos
Todos nós nascemos integrados ao inconsciente coletivo, repleto de arquétipos que, ao longo da vida, vão sendo atualizados, manifestados – constelados – ou não. Esses padrões originais têm uma base profunda e única, que vai além do que podemos compreender de forma cognitiva. Para isso, Jung utiliza o termo alemão Selbst – o si-mesmo ou arquétipo central, aquele que é da ordem e da totalidade do homem.
Dessa forma, inicialmente, esses “pacotes de informação” transitam pelo inconsciente coletivo, onde são, de certa forma, influenciados por outros conteúdos já presentes nesse nível da psique. Posteriormente, eles emergem para a consciência, podendo se manifestar sob a forma de intuições, visões, sonhos, percepções de impulsos instintivos, imagens, emoções e ideias.
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Referências bibliográficas
JUNG, Carl Gustav. Sobre sentimentos e a sombra. Petrópolis: Vozes, 2015.
JUNG, Carl Gustav. Sobre sonhos e transformações. Petrópolis: Vozes, 2014.
JUNG, Carl Gustav. O homem e seus símbolos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995.
STEIN, Murray. Jung, o mapa da alma. São Paulo: Cultrix, 2006.
VON FRANZ, Marie-Louise. Alquimia e a imaginação ativa. São Paulo: Cultrix, 2022.