Psicanálise

Transferência e Contratransferência: O Papel na Psicanálise

Transferência e Contratransferência: O Papel na Psicanálise

Você já ouviu falar em transferência e contratransferência, mas não sabe exatamente o que esses termos significam na prática da psicanálise? Neste texto, você vai entender o que são transferência e contratransferência, suas origens no pensamento de Freud, como se manifestam na clínica e por que exigem tanto cuidado por parte do analista.

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O que é transferência e contratransferência na psicanálise?

A transferência é definida por Freud como o vínculo que o paciente estabelece com seu analista. Este vínculo pode ser, por exemplo, de amor, de ódio, de idealização, de ciúmes, de inveja, etc. Na maioria das vezes, inclusive, uma relação transferencial engloba vários destes sentimentos ao mesmo tempo.

Já a contratransferência é definida por Freud como o modo através do qual o analista reage às transferências de seus pacientes. Tais reações podem ser igualmente de amor, de ódio e dos demais sentimentos acima elencados.

Freud e a descoberta da transferência

A transferência foi descoberta já nos primórdios da psicanálise enquanto Freud observava a relação da paciente Anna O. com seu médico Joseph Breuer (Breuer & Freud, 1895/1996).

Com efeito, era visível que Anna O. apaixonara-se pelo terapeuta. Ela não parava de falar em Breuer, dizia também sentir muitas saudades dele e até – segundo Ernest Jones (1999), biógrafo de Freud – chegou a desenvolver uma espécie de “gravidez psicológica” durante o tratamento.

O amor de transferência

A partir deste e de tantos outros casos, Freud (1915/1996) concluiu ser comum que se estabeleça na clínica uma relação transferencial amorosa da parte do paciente. Ou seja, em uma relação terapêutica, temos, de um lado, um paciente que sofre demais em virtude de seus tantos conflitos e, de outro, alguém que ele supõe poder curá-lo. Assim, a relação terapeuta e paciente passa a ser marcada por uma idealização tal que o analista vem a assumir uma posição central na vida do paciente.

Deste modo, é comum que o paciente venha a pensar demais em seu psicanalista e que não pare de falar dele para seus familiares e amigos. É também corriqueiro que venha a stalkear as redes sociais do analista visando descobrir alguma informação sobre sua vida privada: onde mora, se é casado, se tem filhos... E muitos pacientes são capazes de passar horas e horas vendo repetidas vezes algumas fotos de seus analistas.

Outros exemplos comuns de transferência no vínculo entre terapeuta e paciente

Como o amor é um sentimento que nunca vem sozinho, é normal que o vínculo entre terapeuta e paciente seja também mesclado por intensos ciúmes, ódios, sentimentos de posse, competições, etc.

  • O ciúme: Se onde há amor há ciúme, nada mais previsível que as relações terapêuticas sejam também por ele marcadas. Assim, pode o paciente, por exemplo, vir a detestar os outros pacientes de seu analista e, nesta medida, às vezes, o ambiente de uma sala de espera é marcado por muita hostilidade. É inclusive comum que um paciente questione: “por que você atende tal paciente por mais tempo que a mim?”, “por que você sorri para ele, mas nunca para mim?” ou então “eu tenho certeza que você prefere a ele que a mim”.
  • O ódio: Em todo este contexto é também de se imaginar que a relação terapeuta e paciente seja marcada por um grande ódio. Com efeito, nós também odiamos aqueles que tanto amamos e, por isto, pode acontecer que o paciente diga coisas horríveis sobre a pessoa de seu analista, tenha sonhos maléficos com ele, ou então, que se entregue às mais variadas brigas e disputas. Desta forma, o analista pode ser alvo de algumas ironias e indiretas e a situação às vezes chega ao limite de o paciente descarregar uma grande raiva em cima de seu terapeuta.
  • O sentimento de posse: Outro exemplo é quando o vínculo entre terapeuta e paciente é acompanhado por um intenso sentimento de posse. Daí pode acontecer de o paciente vir a encher o analista de presentes com o intuito de conquistá-lo, tentar manipular sua agenda para que consiga protagonismo diante de seus outros pacientes ou mesmo de se colocar como alguém gentil e amável para que o analista retribua todo o seu amor.
  • A competição: É também provável que este vínculo seja marcado por forte competição. Ou seja, se o paciente presume que o analista tudo sabe, é capaz que ele próprio insista em defender que sabe muito mais que o terapeuta. Uma relação transferencial baseada na competição pode também incluir questionamentos do paciente sobre quem é mais jovial, bonito, magro ou atlético dentre tantas outras coisas.


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Por que ocorre a transferência?

No artigo “A dinâmica da transferência”, Freud (1912/1996) diz que ela ocorre porque quando uma pessoa está em análise, ela costuma deslocar uma série de tendências suas para o psicanalista. Trata-se, geralmente, de algumas formas de se comportar na vida que o paciente traz consigo desde a infância mais remota e que agora serão direcionadas ao terapeuta.

Como exemplo, podemos citar o caso de uma pessoa que, desde criança, sente muita inveja dos outros. Ela agia desta maneira com seus irmãos e irmãs, com as outras crianças do colégio e, conforme crescia, passou a se comportar assim com os amigos, com aqueles que conseguiam namorados melhores que os seus e mesmo com os que tinham um trabalho mais valorizado.

Ora, nada mais óbvio que quando esta pessoa inicie um tratamento, também passe a sentir inveja do analista, já que ela é assim com todo mundo e é desta forma que ela se relaciona.

A transferência e o inconsciente

No entanto, destaca-se que não necessariamente o paciente possui a exata consciência daquilo que transfere ao analista.

Ou seja, se tomarmos o exemplo acima, podemos dizer que tal paciente talvez nem tenha noção do quanto é invejoso nem do quanto transfere suas relações de inveja para o terapeuta. Pelo contrário, a psicanálise estabelece que todos nós temos um inconsciente, ou seja, todos nós desconhecemos grande parte dos nossos desejos, fantasias e comportamentos. Neste sentido, Freud vai dizer que são justamente estas tendências inconscientes aquelas que com maior frequência estarão presentes na cena transferencial.

Como ilustração, tomemos o exemplo de uma pessoa que se julga extremamente boa. Uma pessoa religiosa, caridosa e incapaz de praticar qualquer maldade. No entanto, ela não possui a exata consciência do quanto é agressiva com os outros, fazendo com eles pequenas maldades como fofocas, intrigas e injustiças.

Ora, quando esta pessoa entra em análise, é exatamente desta forma que ela vai se comportar com o psicanalista. É provável que dirá o tempo inteiro o quanto é boa e íntegra, porém sem perceber, direcionará ao analista todas as suas pequenas agressividades. E, assim, ela só poderá se tornar consciente do quanto é agressiva quando isso for apontado por seu psicanalista.


O caso Dora

Conforme colocamos, Freud descobriu a existência da transferência bastante cedo quando seu colega Breuer atendia a Anna O. Todavia, foi a partir de situações vividas com sua paciente Dora que ele concedeu maior atenção ao tema. O conjunto de suas observações sobre o tema está em “Fragmentos da análise de um caso de histeria” (Freud, 1905/1996).

Dora era uma jovem envolta em paixões por algumas pessoas de seu convívio, paixões estas que jamais se concretizavam. Dentre elas, estava seu apaixonamento pelo melhor amigo de seu pai, o Sr. K. Com ele a jovem mantinha uma relação no mínimo curiosa: sem medir quaisquer esforços, Dora seduzia completamente o Sr. K. e se entregava a tal jogo de sedução com todas as suas armas. Porém, quando ela sentia que estava conseguindo seu objetivo, de repente, abandonava a cena e sumia. Claro que a jovem não tinha a exata consciência de que agia desta maneira.

E foi exatamente assim que Dora se comportou com Freud. Seduziu o analista em demasia a ponto de Freud em muito se dedicar a sua análise e, inclusive, ter o desejo de publicar o caso (algo que não acontecia com qualquer paciente seu). Dora também insistia em não relatar determinadas coisas, deixando Freud extremamente curioso e praticamente em suas mãos. E em meio a tamanho jogo de sedução, de repente, Dora abandonou a análise.

Quando se dá o abandono, Freud finalmente percebe o quanto não tinha se dado conta da transferência de Dora.


A contratransferência na psicanálise

Foram poucas as vezes que Freud escreveu sobre a contratransferência. Em linhas gerais, ela é definida como o conjunto de sentimentos que um paciente é capaz de despertar em seu analista: amores, ódios, invejas, raivas, etc. Vale marcar que assim como a transferência do paciente para o analista é marcada por tendências inconscientes, o psicanalista também não possui a exata consciência daquilo que contratransfere.

Deste modo, o terapeuta pode, por exemplo, desenvolver um apaixonamento por certo paciente sem que disso esteja consciente. Da mesma maneira, pode ter inveja de um paciente sem que exatamente perceba isso. E pode até mesmo, sem saber, desenvolver um sentimento de posse em relação a seus pacientes, o que em muito prejudicaria seu trabalho.

A contratransferência e a importância da análise pessoal

Assim, ao contrário da transferência que é tida como algo a ser estimulado no tratamento psicanalítico, Freud (1915/1996) situa a contratransferência como uma coisa a ser incisivamente evitada. Isto porque um amor, um ódio, uma inveja ou uma raiva que o analista venha a sentir de seus pacientes pode, em muito, atrapalhar seus tratamentos.

Daí a necessidade de os analistas também fazerem uma análise pessoal. Ora, é comum – e até mesmo inevitável – que um terapeuta venha a sentir os mais variados afetos por seus pacientes. Alguns podem despertar-lhes maior interesse, outros podem fazer com que o psicanalista se lembre de traumas e ainda há os que ele possa vir a conceder um exagero de cuidados.

Por isso é imprescindível que um analista seja uma pessoa suficientemente analisada. Com sua análise pessoal, ele conseguirá melhor elaborar seus sentimentos e fazer com que suas próprias questões não interfiram tanto em seu trabalho.


O manejo da contratransferência

Com base nesta discussão, podemos perguntar: como um tratamento analítico poderia progredir se o analista respondesse com raiva aos sentimentos transferenciais de seus pacientes? Com certeza, o vínculo entre terapeuta e paciente passaria a ser marcado por uma raiva imensa que em muito prejudicaria o tratamento.

Ou então: como um tratamento analítico pode progredir se o analista responde com certo cansaço às falas de seus pacientes? Aqui a contratransferência também é prejudicial. E a mesma pergunta deve ser feita em relação a outros sentimentos do analista que venham a se manifestar na contratransferência.

Nesta medida, é importante frisar que o psicanalista não deve necessariamente se portar como uma pedra de gelo diante de seus pacientes, pois isso é humanamente impossível. Enquanto ser humano, ele possui os mais variados sentimentos que sempre se manifestarão independentemente de sua boa vontade e demais esforços. Por isso, certa dose de contratransferência é inevitável ao tratamento. Porém, é importante frisar que determinados exageros sentimentais da parte do analista são prejudiciais e por isto devem ser analisados.

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E quando o terapeuta se apaixona pelo paciente?

Foi para responder esta pergunta que Freud (1915/1996) escreveu o artigo “Observações sobre o amor transferencial”.

Apesar de ser uma coisa rara, nenhum psicanalista está livre de se apaixonar por alguns de seus pacientes. De fato, não controlamos nossos sentimentos e, às vezes, quando menos esperamos, eles acabam transbordando. E, assim, cabe ao psicanalista analisar-se e, com sua paixão devidamente elaborada, decidir se o tratamento prossegue ou termina em virtude de seu amor contratransferencial.

Deve o psicanalista orgulhar-se quando um paciente se apaixona por ele?

Uma discussão sobre esta pergunta também se faz em “Observações sobre o amor transferencial”.

Nele, Freud (1915/1996) é incisivo ao responder que não, alertando ser raro um paciente se apaixonar por seu psicanalista devido aos seus encantos pessoais. Conforme vimos, o amor transferencial é induzido pela própria situação analítica, mas jamais pelo charme, beleza ou inteligência do psicanalista. Por isto o terapeuta não teria motivos para orgulhar-se do fato de um paciente estar por ele apaixonado. Tampouco para entregar-se a uma ardente paixão com um de seus clientes.

Este texto foi escrito pelo professor Ricardo Salztrager, psicanalista e professor associado da UNIRIO e da Casa do Saber. Possui Graduação em Psicologia, mestrado e doutorado em Teoria Psicanalítica pela UFRJ.

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Referências:

BREUER, J. & FREUD, S. (1895/1996). Estudos sobre histeria. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. vol. 2. Rio de Janeiro: Imago. p. 11-316.

Freud, Sigmund. (1905/1996). Fragmentos da análise de um caso de histeria. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. vol. 7. Rio de Janeiro: Imago. p. 13-116.

_____. (1912/1996). A dinâmica da transferência. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. vol. 12. Rio de Janeiro: Imago. p. 107-119.

_____. (1915/1996). Observações sobre o amor transferencial. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. vol. 12. Rio de Janeiro: Imago. p. 173-188.

Jones, Ernest. (1999). A Vida e a Obra de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago.

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