Quem foi Fernando Pessoa?
O poeta Fernando Pessoa nasceu em Lisboa em 1888. Nos primeiros anos de sua infância mudou-se com a família para Dublin, de modo que recebeu uma educação inglesa, o que foi fundamental para sua sólida formação clássica, que contemplou não só os clássicos gregos e latinos, como também a literatura em língua inglesa.
A vida de Fernando Pessoa foi marcada por bastante discrição e, paralelamente à sua vasta produção literária, o poeta trabalhou em diversos escritórios como tradutor de cartas comerciais. Essa opção de vida mais pacata foi importante para que sua obra, tão vasta e complexa, fosse escrita.
Apenas o conjunto de poemas que integram o livro Mensagem foi publicado durante a vida do autor, mas muito de sua obra foi publicada esparsa em jornais e revistas literárias - muitas delas criadas por ele mesmo e seus amigos – como as revistas Athena e Presença, ou a mais conhecida de todas, a publicação Orpheu. Estima-se hoje que sua obra seja formada por cerca de 25 mil originais, alguns dos quais ainda inéditos.
Encontrar um conceito universal para tratar da obra é complicado quando se fala em Fernando Pessoa, pois cada uma de suas facetas abre um novo mundo. Existem, porém, dois conceitos-chave que auxiliam em sua compreensão: a negatividade e a ironia. Nada se positiva em Pessoa e isso ocorre devido ao uso constante de ironia, suspendendo todo tipo de verdade e desestabilizando o que já foi dito.
Observando as faces de Pessoa é possível notar que a verdade não está em lugar algum, tirando a positividade da vida e levando para o desassossego. No entanto, ao mesmo tempo que tem seu peso, Pessoa é um grande brincalhão que gosta de “magicar” o pensamento.
Observando sua obra, existem dois polos: a construção de um projeto neopagão, que destrói tudo, e um projeto de cultivo da alegria por poder ver as coisas no aqui e agora e se contentar com isso, liderado pelo mestre Alberto Caeiro. Enquanto o primeiro polo atrai a noite, apresenta o sentido das coisas em abismo e a dor do poeta diante da finitude que causa um desassossego puro, o segundo tem um centro solar, uma forma de burlar a dor existencial.
Bernardo Soares, a quem se atribui a autoria da obra Livro do Desassossego, é um heterônimo, ou seja, um sujeito que se constrói por palavras. Sua existência, porém, é tão real quanto a de um autor que tem positividade física.
Poeta no plural: o fenômeno dos heterônimos de Fernando Pessoa
Fernando Pessoa foi o criador do conceito literário de ‘heterônimo’, que difere bastante da noção de pseudônimo. O heterônimo não consiste apenas em uma ‘máscara’ criada pelo poeta, ou uma assinatura diferente para si mesmo.
Pessoa dotou cada um de seus heterônimos com uma personalidade diferente, uma biografia – que incluía até mapas astrais –, um estilo de linguagem e um uso das formas poéticas diverso. Até mesmo seu ortônimo – ou seja, os poemas em que ele assinava como Fernando Pessoa – entrou nessa articulação literária, dialogando com todos os outros personagens poéticos.
A heteronímia está indissociavelmente ligada à questão da identidade do sujeito criador. Talvez a grande inovação trazida pelo poeta tenha sido justamente a quebra com a tradição romântica que lhe era anterior – tradição essa que contava com um ideal de poesia como a expressão máxima do sujeito -, trazendo novamente para a cena os preceitos da poesia do período Clássico, na qual o ‘eu’ do poema nada tinha a ver com o ‘eu’ do poeta, mas funcionava como um espaço privilegiado de criação em que o poeta devia agir da maneira mais inovadora possível.
Os heterônimos eram mutuamente influenciados, sendo que todos consideravam Alberto Caeiro como mestre - e ele também pode ser visto como principal ponto de oposição, pois, de alguma maneira, todos os outros heterônimos, e também o ortônimo, conversam com sua poesia, tanto do ponto de vista de suas escolhas formais, quanto temáticas.
A poesia de Fernando Pessoa e o ortônimo
A poesia do ortônimo, marcada pela exploração do ‘eu’, reflete seus paradoxos. Em “Autopsicografia”, um dos poemas mais conhecidos de Fernando Pessoa, o poeta parece analisar-se, mas escreve na terceira pessoa, revelando o distanciamento entre vida e arte. A arte, segundo ele, é representação e, por isso, distinta da vida real.
A ideia de capacidade negativa, conceito herdado do poeta John Keats, fundamenta a noção de fingimento em Fernando Pessoa. Keats chamou de capacidade negativa o que ocorre quando alguém é capaz de persistir em incertezas, mistérios e dúvidas, sem a necessidade de racionalizar, o que está intimamente ligado à noção de imaginação e de verdade da imaginação.
Grandes frases de Fernando Pessoa
Segundo Fernando Pessoa, “O artista não exprime as suas emoções. (...) Falando paradoxalmente, exprime apenas aquelas emoções que são dos outros”, algo que fica claro em “Autopsicografia”.
Outro poema, “Isto”, aprofunda essa ideia com o verso “Sentir! Sinta quem lê!”, mostrando que o cerne do poema está naquilo que o leitor absorve, sem interesse nas intenções ou sentimentos do autor.
Além do autoconhecimento, o ortônimo explora temas ocultistas. Segundo Benedito Nunes, a Cabala e a Ordem da Rosa Cruz estão presentes em “Eros e Psiquê” e “Passos da Cruz”. Já Otávio Paz alerta que interpretar a obra de Pessoa apenas por esse viés seria limitante.
“Mensagem”, sua epopeia, dialoga com a tradição portuguesa, trazendo lirismo, musicalidade e, frequentemente, hermetismo, como na famosa quadra “o poeta é um fingidor [...]”.
A obra do ortônimo pode ser organizada em cinco grupos:
- Diálogo com a tradição culta (como em Mensagem);
- Tradição popular portuguesa;
- Poemas satíricos ou infantis;
- Investigação do ‘eu’;
- Temas iniciáticos e ocultistas.
Fernando Pessoa e Alberto Caeiro: o mestre dos demais
Alberto Caeiro era venerado pelos demais heterônimos como mestre, tendo morrido de tuberculose bastante jovem, aos 26 anos. Uma das principais discussões em torno desse heterônimo é sua relação com a transcendência: sua poesia é conhecida como a poesia das ‘coisas’, negando a metafísica e preterindo os sentimentos, para servir à natureza.
A crítica literária Leyla Perrone Moisés afirmou que Caeiro seria praticante de um paganismo absoluto, cujas raízes estão fincadas em recusas (ou seja, sua ‘profecia’ não se dava através afirmações assertivas ou imperativos, mas, maioritariamente, através de recusas).
Outra coisa que ele coloca em questão com sua poesia é o papel da linguagem diante da concretude da vida e das coisas da natureza. Segundo ele, as coisas que existem no mundo deveriam ser vistas, de modo que o esforço da poesia seria o de chegar o mais próximo possível da ‘coisa em si’ – aí esbarra-se nas questões metafísicas: o excesso de pensamento e especulação sobre o mistério seria o responsável por afastar o homem do mundo e de sua beleza.
É interessante notar as relações que se estabelecem entre todas as personas do poeta: Ricardo Reis surgiu da poesia de Caeiro – Reis coloca Caeiro como mestre maior e motivador principal -; Álvaro de Campos, por sua vez, nasceu como uma persona de oposição a Ricardo Reis. Por outro lado, podemos ver na poesia de Caeiro uma oposição direta à obra do ortônimo, especialmente aos poemas iniciáticos e místicos.
Para Alberto Caeiro era importante ver com a visão, ou seja, ter um olhar direito para as coisas, quase que de maneira infantil. Mestre das sensações, possuía uma linguagem concreta, como se não houvesse intervenção do pensamento analítico. No poema II de “O Guardador de Rebanhos”, Caeiro escreveu: “Creio no mundo como num malmequer, porque o vejo. Mas não penso nele, porque pensar é não compreender”. Assim, há uma espécie de olhar inaugural para as coisas, sem julgamentos ou correlações, existindo apenas o olhar e a coisa; esse é o modo do poeta de ver as coisas.
No poema intitulado “Abismo”, encarar o Tejo leva a um devaneio, ou seja, o uso da visão fica mais complexo. Ao pensar o que é ser rio e o que é ser alguém olhando o rio, o olhar se desdobra em um processo abismal. No poema, quando o eu lírico perde a conexão de tudo, de maneira avassaladora, encontra Deus. Nesse sentido, é necessário dilacerar os extremos para encontrá-lo.
Fernando Pessoa e Ricardo Reis: o clássico
Ricardo Reis é o heterônimo de Fernando Pessoa mais ligado à poesia clássica, tanto nas formas quanto no conteúdo. Ele faz várias referências à mitologia e poetas gregos e latinos, como Horácio, famoso pelo "carpe diem". O próprio Pessoa o descreveu como um "Horácio grego que escreve em português".
A poesia de Ricardo Reis usa a natureza como metáfora para a vida e os sentimentos, ao contrário de Caeiro, que a vê de forma literal. Elementos naturais, como as estações, simbolizam o tempo e a efemeridade da vida, temas também comuns em Horácio. No entanto, as questões antimetafísicas de Caeiro aparecem em Reis de forma diferente, influenciadas pelos clássicos.
Como os demais heterônimos, Reis tem uma biografia própria: nasceu no Porto em 1887, estudou em um colégio jesuíta, aprendeu latim e grego por conta própria, e formou-se em medicina. Sua poesia é descrita como uma "medicina da alma".
Os heterônimos de Fernando Pessoa também trocavam críticas entre si. Reis considerava Caeiro seu mestre, afirmando que ele ressuscitara a essência do paganismo, embora faltasse disciplina em seus versos. Já Álvaro de Campos admirava Reis, mas criticava sua rigidez ao submeter as emoções a formas poéticas tão estritas.
Fernando Pessoa e Álvaro de Campos: o anticlássico
Álvaro de Campos foi o último heterônimo criado por Fernando Pessoa, mas, segundo a carta do autor a Adolfo de Casais Monteiro, foi o primeiro a ser apresentado ao público. Campos é, dentre os heterônimos, aquele cuja produção poética é mais numerosa e que passou por mais fases literárias.
Além disso, ele é a face pessoana que mais diretamente interfere na vida política e cultural portuguesa. Pessoa chegou, em alguns momentos, a assumir a personalidade do heterônimo na vida prática cotidiana.
Pode-se dividir a obra de Campos em três principais fases:
- a primeira, do “Opiário”;
- a segunda, que segue um futurismo à moda de Walt Whitman;
- e a terceira, mais pessoal, que se contrapõe a segunda.
Para a crítica, dessa última fase surgiram os poemas mais importantes de Álvaro de Campos.
Campos é conhecido como o poeta do sentir. Se Reis se protege diante da vida, contendo as emoções, Campos é a abundância de todas as paixões. Ao contrário de Reis, ele canta profundamente tanto o passado quanto o futuro.
Enquanto Ricardo Reis é o poeta da virtude, Álvaro de Campos é o poeta do vício, do descontrole, da emoção e do prazer. Em “Ode Triunfal”, um dos seus mais conhecidos poemas, Campos faz uma celebração da modernidade chamando-a de “revelação metálica e dinâmica de Deus”.
Para a pessoana Yvette K Centeno, o ímpeto de Campos de sentir tudo de todas as maneiras – “Ah, não ser eu toda gente e toda parte! ” – reflete a própria heteronímia de Fernando Pessoa. Os heterônimos conversam entre si e com Pessoa como diferentes partes articuladas de um todo.
Fernando Pessoa, Bernardo Soares e o Livro do Desasossego
O “Livro do Desassossego”, que passou a ter autoria de Bernardo Soares após o suicídio de Sá Carneiro, teve muitas edições, sempre com uma grande questão: como escolher um critério para editar?
As datas eram ambíguas e havia mais de um nome como autor. Assim, independentemente da escolha do editor, o livro tem a propriedade de “encostar” em cada um dos heterônimos. Pessoa afirmou certa vez que Bernardo Soares seria o mata borrão que fica no papel depois de escrever, indicando que ele seria os excessos dos heterônimos de Fernando Pessoa – o outro de todos os outros.
O livro propõe enfrentar a finitude humana sem morrer e o desespero sem enlouquecer. Ele é poesia pura, pois não possui ordem e tem forma fragmentada, a partir da qual é possível se deter em imagens com densidades metafóricas.
O tempo de leitura, nesse sentido, é indeterminável. O fragmento entrou em moda no período do romantismo, que pregava a liberdade total da poesia. O romântico, principalmente alemão, tinha a utopia de comungar todas as faces do conhecimento, ou seja, ter noções do todo.
Assim, a maneira mais próxima de chegar nessa totalidade impossível que encontraram foi a escrita por meio de fragmentos. É também a forma mais sociável que existe no texto literário, pois dialoga com toda a bagagem do leitor, parecendo uma conversa.
Um dos fragmentos notáveis é intitulado “Litania”: “Nós nunca nos realizamos. Somos dois abismos – um poço fitando o Céu”.
A Influência e o Legado de Fernando Pessoa
Fernando Pessoa deixou um legado monumental na literatura mundial, não apenas pela vastidão e profundidade de sua obra, mas também pela forma como transformou a própria noção de autoria. Sua inovação mais notável, a criação dos heterônimos, questionou a identidade fixa do autor e trouxe à tona um sujeito fragmentado, uma pluralidade de vozes que dialogam entre si. Esse rompimento com a tradição poética anterior influenciou profundamente a literatura lusófona e internacional.
Pessoa também deixou um conceito importante para o século XX: sua obra inacabada e fragmentada, com papéis dispersos e cronologias incertas, consolidou a ideia de "work in progress", onde o autor não tem controle total sobre a obra, e esta se constrói continuamente com a intervenção do editor e do leitor. Esse conceito reverbera na crítica literária moderna, especialmente na ideia de Roland Barthes sobre "a morte do autor", onde o texto pertence ao leitor e não mais ao seu criador.
A influência de Pessoa estende-se para além da literatura portuguesa, inspirando escritores e movimentos ao redor do mundo. Sua capacidade de inovar na forma e no conteúdo o coloca entre os maiores poetas da modernidade, cuja obra permanece viva e aberta a novas interpretações. Mais do que um simples autor, Fernando Pessoa é um fenômeno literário cuja multiplicidade de ser ecoa nos grandes questionamentos da existência humana.
Referências:
Benedito Nunes. “Poesia e filosofia na obra de Fernando Pessoa”. Colóquio/Letras, n. 20, p. 22-34, jul. 1974.
Fernando Pessoa. Obra Completa de Fernando Pessoa: Volumes 1, 2 e 3. Nova Fronteira, 2016.
Fernando Pessoa. Livro do Desassossego. Todavia, 2023.
Leyla Perrone-Moisés. Fernando Pessoa: Aquém do Eu, Além do Outro. Martins Fontes, 2001.
Octávio Paz. Fernando Pessoa: O Desconhecido de Si Mesmo. Vega, 1988.